Domingos de tédio

Gabriela
5 min readSep 4, 2023

Nenhuma das vezes que passei por perto daquele morro considerei subir, mas neste dia em especial, perguntando-me como remediar um domingo de tédio, considerei. Fazia dias que o bloqueio criativo vinha me visitar, impedindo que eu finalizasse o último romance solicitado pela editora, os prazos estavam se esgotando e eu ainda não tinha um final. Os domingos normalmente eram mais vazios do que aquelas páginas em branco zombando de mim e o morro verde parecia tão alto, tão longe do mundo real e do preto e branco que invadia meus dias. Subi.

Conforme eu subia, mais bonita a vista parecia e mais confortável eu me sentia, longe de tudo que lembrava os momentos monótonos que costumavam compor minha realidade. Não havia pressa, nem urgência, apenas o prazer em desfrutar do longo caminho ensolarado até o topo. Quem dera tudo na vida fosse assim.

As pessoas costumam me julgar por não apreciar mais meu trabalho, afinal ser escritor em uma das maiores editoras do país tem seu prestígio, mas não me culpo por sentir aflição em contar histórias encomendadas, que não saíram do meu imaginário. Quando decidi ser escritor, por vocação e vontade, dediquei tudo. Após um tempo descobri que essas coisas nem sempre são o suficiente. No início, as palavras caíam facilmente como a chuva de novembro anunciando o verão. Agora, o tempo era de seca e escassez.

Chegando no alto do morro encontrei uma presença peculiar sentada embaixo de uma grande árvore repleta de frutas. Por um segundo, considerei ir embora, não pretendia perturbar ninguém ou tomar um lugar que já estava ocupado, foi quando nossos olhos se encontraram e desejei ficar, nem que fosse por poucos minutos. A verdade é que a profundidade daquele olhar me fez perder a noção do espaço-tempo por uns segundos, era de um azul tão claro, semelhante à chuva que eu tanto precisava. Antes de parecer um lunático encarando aquela menina, improvisei:

“Desculpa atrapalhar, mas essa fruta aí não tá madura.”

A estranha me encarou com olhos curiosos, em silêncio. Então respondeu com o vislumbre de um sorriso, achando engraçado o meu óbvio constrangimento:

“E qual o problema? Ela encontra um jeito de ser doce mesmo na sua amargura.” Esticando um gomo para mim, disse: “Prove.”

Lentamente me aproximei e peguei o pedaço da fruta em minha mãos, experimentei. Não era doce, nem amargo, mas um equilíbrio entre as duas coisas. Finalmente me virei e encarei a vista. Era espetacular. Costumava passar correndo por aquelas ruas, tão escravo da rotina que nem chegava a reparar na beleza de tudo aquilo. A menina cortou o silêncio:

“Gosto daqui porque me faz refletir sobre a vida.”

Observei os desenhos ao redor dela, a maioria eram paisagens familiares, pareciam retratos da cidade. Lembrando do seu apontamento, questionei:

“Como assim?”

Não sei se foi minha expressão confusa ou alguma lembrança que surgira em sua cabeça, mas ela riu de um jeito tímido e respondeu:

“Podemos enxergar a cidade com um olhar de fora e finalmente apreciar sua beleza. A vida também é assim, às vezes só enxergamos o pior dela porque estamos imersos nessas situações, mas basta nos afastarmos para vermos a beleza em todo resto. Às vezes só precisamos perdoar a amargura e aproveitar o doce.

Então ela se levantou, recolhendo seus desenhos e jogando uma fruta doce-amarga para mim. Antes de sair andando como a dona do mundo, virou-se com um sorriso:

“Volte mais cedo no próximo domingo”. E se foi.

A semana passou rapidamente. Voltei e lá estava ela. Desfrutamos de boas conversas, compartilhamos frutas e até o silêncio um do outro. Na semana seguinte, retornei e na próxima, também. Falamos sobre nossos trabalhos e sobre nossas frustrações. Era fácil e eu sentia falta de algo fácil. Às vezes os minutos pareciam horas e, infelizmente, às vezes as horas é que pareciam minutos. Com o tempo, os dias da semana começaram a passar em um piscar de olhos e o morro não parecia mais difícil de subir, talvez por saber que ela estaria sentada lá esperando por mim.

“Chegou mais cedo hoje.”

“É que pensei que iria chover”.

Nunca estava preparado para dar boas respostas e ela achava graça nisso. E por mais que eu tentasse parecer desinteressado, ela se fazia indiscutivelmente interessante. Seus assuntos eram tão distintos que iam de átomos até o calendário do zodíaco. Às vezes ela era pura subjetividade e às vezes era tão assertiva que até assustava.

Um dia questionei-a sobre os desenhos, apenas pela vontade de ouvi-la articulando cada palavra:

“O que te inspira a desenhar?”

“Depende. Geralmente a inspiração surge dos momentos mais comuns, que as pessoas geralmente não dão importância, gosto de dar uma visão atenciosa para eles, apesar de não serem meus momentos favoritos…”

“Quer eternizar os momentos comuns então?”

“Sim... Um momento como esse, por exemplo, não me traz muitas ideias e motivações...” - Respondeu finalizando com um olhar tão intenso que nem pedia complemento, fazia muito isso, essa coisa que as mulheres costumam fazer obliquamente com os olhos.

Sou suspeito em dizer que todas as conversas eram fascinantes, sem exceções. Conforme conversávamos eu sentia que as palavras nos transportavam para outros lugares, quase como ler um bom livro. No decorrer da semana me pegava distraído pensando qual seria a viagem do próximo domingo.

“Raul, por acaso você sabia que “pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiótico” é a maior palavra da língua portuguesa? A maior já registrada, pelo menos.”

“Não sabia. O que significa?”.

Obviamente eu sabia o significado, só que eu seria um idiota de admitir isso e perder tanto a explicação, como o brilho daqueles olhos contentes em ensinar mais um de seus conhecimentos aleatórios.

“Se refere a uma doença que pode aparecer no pulmão por causa da inalação de cinzas vulcânicas.” - Erguendo a sobrancelha, deu de ombros: - “Se você prestar atenção consegue deduzir isso apenas analisando a estrutura morfológica dessa palavra!”

Não existia nenhum traço de soberba nas palavras dela, pelo contrário, parecia que sua maior paixão era conhecer o mundo, refletindo e ensinando sobre dele. E eu era grato por ser o ouvinte nessas experiências.

Em certo ponto os dias úteis se tornaram arrastados e o que me motivava era saber que em toda semana havia um domingo. No entanto, meus dias já não eram fragmentos em preto e branco, em algum momento um arco íris fora pintado e como as sete cores, eu tinha sete dias tingidos de tons que pareciam muito com a felicidade.
Nunca paramos nossos encontros. Nos domingos de chuva éramos protegidos pelos galhos e nos domingos de sol, éramos presenteados com a sombra. Embaixo daquela árvore tínhamos o refúgio de sermos quem éramos, aquilo era um porto seguro em meio ao caos, que nos permitia inclusive amar o caos. Eu, que um dia tive dúvida sobre subir, odiava ter que descer aquele morro e voltar somente no outro domingo, meu coração palpitava me pedindo calma, eu não podia perder aquilo.

Não era amor, era melhor.

O tédio dos domingos tinha acabado e finalmente eu podia voltar pra casa com a inspiração que precisava para aquele fim, dando um ponto final também aos dias de seca.

Conto que publiquei no livro “Contos de amor ou amizade(?)”.

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